As senhoras atrás do balcão carimbavam, escreviam, explicavam fazendo gestos com os lápis, interrompiam-se às vezes para atender o telefone ou consultarem formulários, tudo isto sem grande ruído, sem atropelos, sem desordem. Eram três horas, havia sol lá fora e uma árvore bonita no passeio, com cachos de flores. Como se chamava?
Foi à tarde porque lhe disseram que havia menos gente do que de manhã, e achou um bom conselho visto que tirou a senha número 23, que não lhe pareceu demasiado alto. A repartição era uma sala relativamente grande, com cadeiras de plástico e, atrás do balcão, cinco senhoras, cada qual debaixo de uma placa, suspensa do tecto por duas correntezinhas. Nas placas os números 1, 2, 3, 4 e 5. A meio da sala um écran com o número 9 aceso. A certa altura o écran tilintou, o número mudou para 10 e uma velhota, que ocupava uma das cadeiras de plástico, aproximou-se da senhora sob o número 4, visto que, junto ao 10, apareceu um 4 a palpitar. As cadeiras de plástico achavam-se todas ocupadas, havia algumas pessoas à espera de pé, uma ou duas crianças mais ou menos sossegadas, um sujeito de jornal sob o braço a aperfeiçoar os dedos com um corta-unhas. De tempos a tempos, atrás do balcão, passava um homem atarefado, transportando papéis que desaparecia numa porta invisível, sem olhar para ninguém. As senhoras atrás do balcão carimbavam, escreviam, explicavam fazendo gestos com os lápis, interrompiam-se às vezes para atender o telefone ou consultarem formulários, tudo isto sem grande ruído, sem atropelos, sem desordem. Eram três horas, havia sol lá fora e uma árvore bonita no passeio, com cachos de flores. Como se chamava? Com o número 23 na mão tentou calcular o tempo que demoraria a ser atendido, porém o número 10 da velhota não havia maneira de passar para 11 e todos os lugares de atendimento se achavam ocupados por criaturas de que apenas conhecia as costas, mais ou menos inclinadas para o balcão, resolvendo decerto questões complicadíssimas visto que intermináveis, obrigando as funcionárias a interrogarem-se umas às outras, a repetirem impressos, a carimbarem mais, uma delas, que usava óculos, coçava o nariz com a haste, lançando em torno olhares perplexos, até se decidir por uma emenda hesitante. Às quatro horas continuava a existir sol lá fora e todavia a árvore bonita já não lhe afigurou tão bonita, nem lhe interessava especialmente o nome nem os cachos de flores. Como as cadeiras de plástico não vagavam as pernas principiavam a doer-lhe, quer dizer, não bem dor por enquanto, um peso, que tentava compensar apoiando-se mais ora na esquerda, ora na direita e rezando para que, encostando-se à parede, a parede o auxiliasse a aguentar parte do incómodo. A certa altura até lhe passou pela cabeça acocorar-se no chão, como os meninos e os ciganos, mas claro que não o fez, por vergonha, por decoro. Limitou-se a sorrir, para dentro, na direcção da infância embora, no sentido em que julgava achar a infância, encontrasse somente uma casa fechada, sem vida, e um tanquezinho de lavar roupa cheio de folhas mortas: tinham saído da vila há imensos anos, depois de uma questão dolorosa de partilhas, recordava-se da mãe, ao subirem para o comboio
- Nunca mais ponho os pés aqui
e a casa para lá ficou, solitária, a decompor-se, sem um eco de passos nas salas vazias. A avó bordava à noite, havia um gato chamado Marau, que se não roçava por ninguém.
E de pouco mais se lembrava. Pela primeira vez teve pena de não se lembrar. Às quatro da tarde a placa número 1 recebeu a senha número 11, e o tilintar do écran afigurou-se-lhe o som mais alegre do mundo. Cuidou que uma das cadeiras de plástico finalmente vazia, que poderia sentar-se: por azar a senha número 11 estava de pé também: era uma mulher gorda, que caminhava amparada a uma canadiana e até então se mantivera, quase sem interrupções, de olhos fechados, numa careta de sofrimento. A mulher gorda demorou séculos a alcançar o balcão e, alcançado o balcão, a enganchar a canadiana no rebordo.
À medida que os minutos andavam as pessoas à espera parecia-lhe que se modificavam: talvez fosse da luz diferente lá fora, da tarde que começava os preparativos complicados de se transformar em noite, da repartição na qual, por não acenderem mais nenhuma lâmpada, escurecia um bocadinho ou, pelo menos, transmitia a impressão de escurecer um bocadinho. Um bocadinho, não: de escurecer sem cessar, até só distinguir o écran onde o número 11 continuava, as silhuetas dos clientes nas cadeiras de plástico e as cinco senhoras, quase invisíveis. Já no escuro completo um telefone tocou.
Nenhuma das senhoras atendeu, de modo que continuou a tocar nos soluços de pavor de um bebé eterno, abandonado nas trevas da repartição. E, tirando o bebé, agora que era noite na rua, a única coisa que persistia no mundo, para além da sua infância morta, era um cachozito da árvore que ia tombando, pétala a pétala, no passeio.
António Lobo Antunes
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