sábado, 28 de junho de 2014

Dores



— Dói-te alguma coisa?
— Dói-me a vida, doutor.
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.


Mia Couto

A Ave



Apesar dos fardos que carregava consigo, ela só queria voar, voar apenas, num mundo em que a realidade se lhe afigura estranha e desconhecida.
Numa simples folha de árvore, escreveu os seus desejos, esperando que se transformassem em borboletas e pudessem fluir neste mundo cru e incerto.
Só queria a liberdade. A sua e a de todas as outras aves que sempre quiseram voar e a quem cortaram as asas, friamente, sem anestesia.
Era um sonho de vôo divino mas inibido para aquela ave, por isso, transformou a sua folha de desejos em crisálidas, dentro das quais colocou a sua alma... e esperou.
Esperou até que se metamorfoseassem e pudessem assim elas voar sozinhas até ao infinito, onde um deus qualquer os pudesse ler e, quem sabe, se compadecesse...
mas só encontrou o azul. Azul de paleta de artista, e então pintou um quadro na força das suas emoções. Uma tela de melodia única que só pode ouvir quem compreende...
Sonetos em clave de Fá, reflectindo os seus anseios, angústias, emoções, desejos, votos...
E essa ave sem asas, ia deixando cair as suas penas alvas a cada pincelada de tinta azul-céu, azul-mar, azul-infinito.
Cada gota uma lágrima e um sorriso porque essa ave, não era um pássaro comum...
toda ela era universo, vôo, anseio, liberdade e Amor.

SLL
(baseado num poema de P. Vicenzotti)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Confissões de um Cão Vadio (1994)


Sim, sou eu... 
sou eu que percorro de noite os caminhos da vossa terra, ladrando e uivando a incomodar o vosso descanso.

Sou eu o culpado dos caixotes do lixo virados e revolvidos... sou eu que vos persigo à saída dos supermercados e vos observo com olhos que imploram, os sacos cheios de compras e de comida...

Sou eu o culpado da porcaria que pisam quando passam na rua
e do espectáculo degradante que vêem quando nos observam deitados a monte debaixo de algum carro ou na berma da estrada à chuva, ou debaixo de um sol escaldante de Verão.

.... sim, sim! sou vadio, mendigo, sujo e desgraçado....

... mas sou assim porque vocês, os "HOMENS", me reduziram a esta miserável existência!!!

Abandonaram-me na estrada, a mim e a tantos outros... feridos, espancados, desprezados
para sermos apanhados e MORTOS!

Aqueles que de entre nós, têm sorte, encontram alguém que os leva consigo, os trata, alimenta e lhes dá um caixote para dormir...
... ah, esses! Esses já não vos incomodam!

Mas NÓS, que chegámos a este ponto de "existência", sem amor nem abrigo
continuaremos pelas ruas a virar caixotes do lixo para encontrar algo que sirva para enganar a fome...
Seremos novamente desprezados, espancados, apanhados e MORTOS...

mas aaahh!!! enquanto nos restar UM sopro de vida
vamos uivar o nosso sofrimento e ladrar em protesto contra o "Homem" que nos MUTILA e ABANDONA!!!!!!!

SLL
Nov 1994

quinta-feira, 26 de junho de 2014

São Pérolas, Meu Senhor.



São pérolas, meu senhor.

Esta frase bem conhecida refere-se a rosas, no caso de Isabel de Aragão... neste, refere-se a pérolas (curioso, a minha avó costumava dizer que "pérolas são lágrimas", lá teria a sua razão)....

Todos sabemos como se produzem, inclusivé como se provoca a formação de uma destas maravilhas. O que podemos não saber é que nem todas as ostras, por mais idênticas que aparentem ser, conseguem produzir pérolas.
Apenas o fazem as chamadas perlíferas, ou seja, algumas são especiais.

As pérolas são um mecanismo de defesa da ostra, contra algo que a magoa, incomoda, um "intruso", desde um grão de areia até um parasita, pedaços de coral ou rocha, que penetrem entre a concha e o manto.
Quando esse corpo estranho a invade, o manto do animal envolve-o em uma camada de células epidérmicas, que produzem sobre ela várias camadas de nácar ou madrepérola, um processo demorado, já que leva em média 3 anos para que uma ostra se possa sentir "protegida" de invasores.
Geralmente é retirada com 12 mm de diâmetro, mas podem atingir até cerca de 3 cm.

Algumas pessoas são como ostras... mais ou menos fechadas, decerto não invulneráveis. A maioria não é capaz de produzir pérolas, mas nenhuma que as possa produzir o fará sem dor, porque esse processo é uma defesa. É isso que as torna especiais.
Envolvem a mágoa em nácar e transmutam-na em algo precioso, que depois oferecem: a sua pérola.
Saibamos reconhecer as pérolas do nosso caminho, as de 3 cm, são raras e as outras, são fáceis de perder de vista.... e recordemo-nos que, como li algures "ostra feliz não produz pérola"....
SLL

sábado, 21 de junho de 2014

Eterno



Quero que gostes de Pina Baush, ou até já nem gostes,
queiras mais queiras diferente;
que gostes da cor e do risco forte de Miró
e do canto desiludido e fundo de Ferré;
quero que aprecies os cheiros sensíveis da eternidade
do grande bruto grande e do pequeno sensível e pequeno;
quero que mores nas páginas da Photo e que, sendo um modelo de virtudes
representes a cortesã mais lassa para mim;
quero-te com mãos de pedra e de veludo;
quero que ames o chique e a Serra d'Aire
- mais o safari que a recepção,
quero que mores e sofras nas páginas de Guido Crepax
e que te irrites com a perfeição absoluta de um retrato de Medina
quero que, se possível vivas dentro do anúncio do Martini
felina e ondulante numa ilha tropical
quero que sejas capaz de divertir-te, de soltar uma ampla gargalhada,
ante o espectáculo ridículo e obsceno de um homem de Quinhentos
a quem atribuíssem um número de contribuinte
quero que ames o longe e a miragem, como o Régio
e que sejas louca e sábia
que tenhas lábios e mordas,
língua e sorvas, sexo e sexes, salto e salto, riso e rias,
sorvedouro inteiro de vida, arrepio de garça, sacudir de cisne,
passos de corsa, graça de arlequim,
pose de Diva, corpo de areia e luz.
E quero que me dês, me dês muito, que me dês tudo,
e que abras as janelas de par em par ao Tejo
e fecundes um poema em cada gesto
e voes como a gaivota em cada espreguiçar
e partas para a Índia em cada cacilheiro
e que sejas, mores, vivas e creias
longe
muito longe daqui...

quero que sejas profundamente minha e ritual
obsessiva e lúcida, doente, febril, tremendo de desejo
disposta a tudo e a mais e a muito mais,
boca de Mundo, seios de Mármore, corpo de Alfazema
e sobretudo Mulher e sobretudo amante.
Se existires assim, nua, inteira, absoluta e pessoal
responde-me
que eu fico aqui, eterno, à tua espera.

Pedro Barroso

Paz



Por vezes a distância é necessária
para que tudo se torne claro.
Os fardos que nos pesaram 
deixam de ter sentido 
e o caminho é cristalino, 
basta começar de novo. 
Passo a passo,
dia a dia.

Vem sentar-te comigo,
sem que uma só palavra seja trocada
ou um só gesto seja esboçado...

Olhos nos olhos apenas.

Clareza absoluta,
luz de lua,
estrelas no firmamento,
música que toca no leve bulir das folhas...

Uma paz absoluta domina a minha alma.
A viagem começou....

SLL

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Imagem que Conduz ao Corpo



A mão dispersa na folhagem
a mão perdida a boca já exausta
onde tocar a pedra, as sílabas da pedra?
Aqui uma sombra branca Não inicial
Este lugar inabitável não é o princípio nem o centro
Como alcançar o coração de alguma coisa
a substância o centro ou a terra do poema

Começo sem amor sempre demasiado cedo
Interrogo não um insecto nem uma pedra
Percorro um muro com um olhar cego
Estou tão longe da realidade como do poema
A distância é infinita Tu não estás aqui
E não sou eu e sou eu ainda Tudo é de menos
e de mais

A mão toca não um silêncio não as sílabas
de um corpo longo e fresco mas uma corrente
congelada uma parede árida calcinada

Como encontrar a imagem que conduz ao corpo
como percorrer as veias vivas do silêncio
e fazer-te estremecer os leves lábios?
Como estar sendo ser estando
junto à boca unida e firme
e trémula
do poema?

Se soubesse desenhar as linhas negras
que abrem a brancura completa
do corpo
que deixam entrever a espuma nos cabelos
no sulco que divide as amorosas pernas
onde o murmúrio permanece do sangue sob as mãos
escreveria as linhas intensas do poema?

As mãos completar-se-iam no perfil ardente
O presente seria o instante do abrigo imenso
A luz dos teus olhos banharia as palavras
e tu serias o corpo luminoso
com os membros libertos sob a água viva

Escrever seria amar-te? Seria
interromper este deserto limpar a ferida aberta?
Seria entrar no interior do centro fresco
percorrer essa praia que ninguém ainda pisou
beijar os teus sinais e a sede límpida
que desenha toda a chama alta do teu corpo?

Escrever seria estar contigo no interior da chama
beber o orvalho das palavras nos teus lábios?
No interior de um barco de folhagem verde
animado de um braço intensamente vivo
ligando-me cada vez mais à linguagem do teu corpo?

Estou já tão perto de ti que uma sombra soluça
Estou tão perto de ti que o poema principia
Toco as sílabas da pedra as sílabas do corpo
A minha língua arde sobre o teu ombro frágil
O perdão do teu olhar é o amor da luz.

António Ramos Rosa

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Ao Som de Rita Lee



Apetecia-me passar o dia
a fazer coisas tecnicamente pouco recomendáveis:
gastar uma quantia considerável em livros
gastar uma quantia ainda mais considerável num viagem, de repente.
gastar uma quantia escandalosa numa casa com quintal claraboia,
uma rede numa árvore
um cão ainda novinho
e um canteirinho onde pudesse ter plantados coentros e agriões.

(e para banda sonora deste devaneio
escolho Rita Lee).

Laura Avelar Ferreira

Imagem de Rinko Kawauchi

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Tempestade



Passei demasiado tempo a chorar o passado e as lágrimas ainda hoje fluem.
O mundo, para mim, nunca foi um porto seguro, antes um lugar 
onde o fogo queima e nunca morre, 
e onde quase tudo serve para ferir e destruir os olhos e as almas inocentes.

Anseio a segurança que me permita ser livre... 
e quando os devaneios aéreos dos meus pensamentos esperançosos 
se afastarem do palco principal dos meus desejos, 
talvez acabem me afogando em ondas alterosas de desespero ou angústia.

Ou talvez também este não passe de um devaneio inconsequente...

Só queria poder abraçar-te até ao sol nascer e poder ver o futuro neste céu estrelado,
mas creio que as estrelas brilham mais que o meu futuro.

... Tenho uma moldura vazia na parede do meu quarto, gostava de colocar-te nela, mas limitei-me a escrever possíveis caminhos a seguir, na minha parede de grafittis.

E neles medito agora, profundamente.

As palavras brilham a néon na moldura escurecida
tão poderosas que terei de abreviá-las para reduzir o seu impacto.
Apenas o teu rosto se destaca, 
tudo o mais é uma insignificância.
E isso, até a mim surpreende...

SLL

Poema do Silêncio



Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio, in 'As Encruzilhadas de Deus'

Soltas



A brisa ergue um espírito desgastado
de anos cerrado num armário antigo.

Ondas que quebram nas rochas, no termo daquela floresta,
cerrando um destino composto de vários ciclos de vida e de morte.

Este lugar parece familiar, 
como se saísse de um passado longínquo em que aqui andei, não sei bem como...

sem medo. apenas uma calma transparente...
uma lucidez estranha que me faz ver as cores de forma diferente

e até a melodia do vento me soa distinta e meiga.

A terra orvalhada encharca os pés descalços, recriando pegadas que já aqui estiveram, mas quando?

Afinal, o futuro escreve-se com o sangue do passado, ainda que em forma de lágrimas...
e os sorrisos parecem também eles recorrentes.

Que estranho saber e não saber, sentir mas sem sentir, reconhecer sem compreender...

sei lá que fados aqui me trouxeram, ou que brisas me tocaram, sobre que terra orvalhada caminhei.

E enquanto adormeço ao som das ondas que batem nos rochedos, o tempo passa por mim como se de vento se tratasse....

SLL

Sabedoria



Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . .
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

Procuro-te



Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

Fantasma Maligno



Vai, parte, que ninguém te persegue,

Vai ao encontro dos teus fantasmas e das tuas próprias inseguranças que te fazem inventar, mentir, enganar e ainda por cima sentir ofendido pelas consequências dos teus próprios actos.

Vai, parte, que ninguém te persegue.

Ninguém manda ninguém porque a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros, e a tua acabou quando resolves interferir naquilo que não te pertence nem compete.

Vai, parte, que ninguém te persegue.

Apenas a tua própria mente deturpada pelos teus sentimentos (terás algo que se pareça com isso?) e pensamentos negros e destrutivos que te prejudicam apenas a ti.

Vai, parte que ninguém te persegue,
recorda sobretudo que todo o mal que fizeres, a ti retornará, cedo ou tarde...

É isto e apenas isto que tenho para te dizer, espírito de mundos tenebrosos.

Parte e encontra a tua paz noutras paragens.

SLL

Eu Simplesmente Amo-te



Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

Beijo a Beijo



E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Rosa Lobato Faria, in 'Dispersos'

Seres Humanos



Seres Humanos - Precisam-se
Que saibam amar em vez de magoar
Que saibam estender a mão em vez de a retirar
Que mesmo estando longe, estejam perto

Seres Humanos, precisam-se...
Que consigam sorrir diante da adversidade
e transmutá-la em luz e amor para distribuir,
que compreendam que todos somos diferentes
e saibam aceitar os outros como são.
E quando tal não for possível,
que se retirem sem mágoa, ofensa ou prejuízo.

Seres humanos, precisam-se
que consigam ver beleza num grão de areia
sem necessitar dissecá-lo num microscópio,
que olhem os animais como irmãos
e não como cobaias para testes lucrativos
e que não olhem as pessoas lá do alto do seu pedestal...

Seres Humanos, precisam-se:
Que não sejam juízes e carrascos dos seus irmãos...
Que em vez de ódio, espalhem amor
Que em vez de soberba, espalhem humildade
Que em vez da ganância de obter, saibam dividir...
... inclusivé tristezas e alegrias.

Seres Humanos, precisam-se,
que consigam confiar, mesmo sabendo que o mundo trai
e a maioria das pessoas os vão magoar
que possam enfrentar isso de coração aberto, ainda que dolorido
e mesmo assim, ter forças para ajudar quando necessário.

Seres Humanos, precisam-se
Que queiram construir um mundo novo
em vez de destruir o que ainda resta
que plantem árvores e sorrisos
que sejam loucos, sarcásticos, alegres ou tristes...
mas que tenham sonhos e arte, e dancem alegremente na chuva

Seres Humanos, precisam-se,
que não tenham medo de ser chamados de loucos,
que não sintam a necessidade de esconder os seus sentimentos
para agradar a uma sociedade podre e egoísta
que nunca compreenderá.

Seres Humanos, precisam-se,
cuja presença seja por si só, um farol e um conforto...
cujo Amor seja um caminho
cuja dádiva ao Universo, seja a de si mesmos...

Não são necessários super-homens ou mulheres
com diplomas e títulos e pompa
que dissertem sabedoria pelas orelhas
que pretendam admiração, holofotes e espelhos.....
precisa-se apenas que sejam Humanos....

SLL

Sonho



Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.

Agostinho da Silva, in 'Poemas'

Ama-me



Ama-me até que a palavra amor se gaste
e deixe de fazer sentido,
por conter em si todos os significados.

Deixa passar o tempo, num arco-íris de magnólias
naquela planície onde só há relva, noite e um lago.
Deixa-me pintar estrelas no teu corpo
e desenhar a lua no teu sorriso...

Beija-me,
como as gotas de orvalho beijam as pétalas na húmida manhã,
em lágrimas brilhantes
enquanto as ninfas dançam
e as dríades sorriem.

Vamos colorir os nossos sonhos
num arco-íris desejado
que aqui,
e só aqui podemos contemplar...

Deixa-me, enfim,
descansar a cabeça no teu peito
e adormecer contigo, até que outro sonho regresse...

- Ama-me até que a palavra amor se gaste
e não sejam necessárias mais palavras.

SLL

Rugas




Se ficasses para sempre
nos olhos que em ti medi
naquele balouçar
de vestal e puta eternamente
serias o sonho prolongado
que não há

Mas os anos amiga
os anos que passaram
fizeram de borracha a tua pele
e o desespero das rugas
enfeitou o teu rosto
num rasgo de ti mesma

E desdobras-te em cascatas de gestos
em busca do que foste
sem saber
e há qualquer coisa de injusto em tudo isso
porque os meus olhos são da mesma idade

E o tempo
esse carrasco lento
fez de nós uma referência
uma memória esconsa do que fomos

E hoje são talvez as tuas filhas
quem desdobrou de ti o alçamento
a graça de garça
e o altar de espanto

Mas tu amiga
aqueles teus seios de mármore
que eu mordi de amante
esses roubaram-mos de inveja
o tempo e a lonjura

Por isso recuso ver-te hoje
sem ser nessa memória

Dizem que é assim
isto de viver
mas há tudo de cru, injusto e triste
nessa amargura
porque a beleza extrema
nunca houvera de morrer

E tudo o que me estrago
a mim não magoa
que eu nunca contei muito
para o belo que me deste
Sempre vou ser isto
mais coisa menos coisa
cada vez mais velho e mais agreste

Mas tu tinhas direito à eternidade
o teu rosto o teu corpo as tuas mãos
moram para mim ainda e sempre
na ideia em que te guardo
e há qualquer coisa de injusto em tudo isto

porque os meus olhos são da mesma idade

Pedro Barroso

As Sete Penas do Amor Errante



Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.

Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.

Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.

Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.

Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.

Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.

Eu não sei se teu corpo se meu chão
mas era ainda a terra e o mar. E em cada
teu gesto a grande peregrinação
das sete penas do amor lusíada.

Manuel Alegre, in "Atlântico"

À Noite



Que me venham as palavras porque as perdi!
Já nada existe aqui para ver
uma concha partida, um quadro rasgado,
um reflexo antigo
oco, perdido e desolado.
Uma mente vazia
há muito esquecida
numa das suas memórias
manchada na tempestade...
De onde me vêem estas ideias?
Estes fluxos constantes e indignos de pura imaginação,
marés de estranhos proto-pensamentos,
sem clareza, sem calor e sem alma
que levam os meus sonhos envoltos num sudário...
mas na morte também eles se tornam apenas fumo.
Resta uma colecção velha e ordenada de começos sem fins,
ou de fins que nunca começaram...
não há mais nenhum lugar para ir,
nem tampouco onde ficar.
Resta apenas roçar os dedos
em pensamentos, idéias, esperanças
e sonhos desenhados na parede,
trocas de voltas à vida,
ou é o contrário?
Acabo de me perder na neblina...

SLL

Amar



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

Tabacaria



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é

( E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fernando Pessoa

Trovoadas de Verão



Está calor e troveja ao longe.
São duas da manhã
e um banco de névoa desce a encosta cobrindo tudo à sua passagem.
Como um mar de neblina cinzenta
atravessa os rios, varre estradas e move-se...
...move-se como um espectro, ou uma espécie de entidade.
E eu, de pé, aguardo que me envolva também no seu silêncio misterioso e frio.
Cai uma leve chuva de verão, em harmonia com os ritmos da natureza.
Afinal, esta chuva e esta bruma compoem a minha própria sinfonia.
E há algo neste silêncio que é calmante
de uma forma que não sei transmitir...
mas sei que a cada raio que cai e a cada trovão que se ouve
nasce um novo guerreiro
pois atrás da névoa hipnótica e calmante
pode ocultar-se uma noite de tempestades.

SLL

Espaço Curvo e Finito



Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

José Saramago (Relembrando o 3º aniversário de falecimento do autor)

Fiapos



Será que se podem criar palavras feitas apenas de emoção,
um género de emoção que não compreendemos ainda inteiramente?

Coisas tão simples como o amor e o ódio são apenas
fragmentos...
vislumbres de um vasto núcleo primordial
conjurado por nós próprios.

Olhando para trás, para aquela estrada infinita
compreendo que sempre quis ser
aquilo que já sou....

E agora já fui alguém e não sou nada.
Vendi-me para me comprar. Perdi a aposta...
e num bocado de pano velho e desgastado escrevo hoje o meu nome
com uma única gota de vermelho-sangue dos cortes do meu coração
sempre envolto num sorriso,
um cataplasma de lágrimas....

Mas a verdade está à direita de cada fenda, de cada ruga
de cada rosto,
e chega até às pontas de cada fio de cabelo que de facto,
nem existe...

No fundo, nada nos rodeia - Apenas ar.
Ar aleatório que não vemos, só sentimos.

E sento-me num raio de luar, olhando-me...
há silêncio lá fora, no meio dos ecos dos murmúrios passados
pequenas carícias apenas vislumbradas.

E as teias que teci durante a noite,
brilham agora com a luz da minha lua prateada
em cada fio existe um pensamento e uma memória,
uma palavra de amor
um sorriso, uma lágrima

e o cheiro a lavanda e a rosmaninho que flutua no ar......

SLL

Poema Sexagésimo Sétimo (excerto)



Em ti, posso mudar a esperança, a serenidade
e o imenso cansaço crescendo
dos meus braços para o mar,
entrando depois pelo teu corpo
para acender lentamente
o fogo
e pronunciar
a oração do fogo.

O que escrevo,
há muito retirei da tua voz,
esse rio que transborda em mim,
cujas margens sou eu, este eu abnegado e lutador,
capaz de florir uma alegria jovem enquanto
o fogo arde.
Não é uma coisa admirável
compartilhar o mesmo leito, como
duas gaivotas felizes
embasbacadas de azul?

Joaquim Pessoa in "Guardar o Fogo"

Medos



Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.

Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.

Que és sempre outro.

Que és sempre o mesmo.

Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

Cecília Meireles

Para Todos Os Que Sofrem



...no desespero da minha impotência febril duma vida gasta no mundo que me rodeia, eu vejo a tristeza estampada em teus olhos, cor de anil, azulados pelas mágoas sofridas num mundo perdido na dor que odeias... pela razão do existir, sem poder deixar de permitir que a vida dite as vindas e as idas nas lágrimas dum olhar pendentes, de certezas gastas e de vazios lugares...
...por não haver pão, nem ceias, nem lares...
...e aqui estou, febril de medo e de raiva, por não ter força, nem poder para o mal afastar, desaparecer...
...e aqueles teus olhos de anil olhar, sedentos dum afago, dum apelo, dum sorrir, quem sabe se dum dar, perseguem-me no perto do aqui estar, no longe do não saber partir e me ver ficar...
...sem nada fazer para aquela cor de anil, mudar...

Joaquim Nogueira (Lobices)

E-Mail II



17/12
                            4.50

Boa noite!

Sei que não me entendo, hoje!
Sinto-me só... por destino!

Fico-me assim por indisposição!
Longe, perto, sempre ausente de mim!

Que faço de mim?

O que serei capaz de fazer por mim?

E por quem amo?

Prisioneiro de passados já passados, porventura nunca vividos...
amarrado e amarrotado por quem não entende que a vida é mais...
muito mais do que isso!

Sinto-me indeciso, certo do que quero, a quem quero e por onde hei-de caminhar!

Não fosse este orgulho incompreensível ou esta cobardia assustadora só me restaria desistir de tudo... de todos!

Tivesse eu coragem e haveria quem me ajudasse?

Dezembro, em vésperas de um Natal menos frio que os anteriores, mas mais áspero do que todos os que até hoje vivi... e eu sem saber quantos natais já passaram por mim!

AMO-A... e terei de saber o que fazer com este tormento!

J. Orlando Rocha in CHATices

Pudesse eu Sonhar



Fora deste quarto, a madrugada espalha-se suavemente...
há gotas de orvalho na relva, em que, nas últimas horas
dança um luar de prata em esplendor silencioso
derramando livremente a sua luz.

Fora daqui, e lentamente,
sobe o sol radiante, muito além do meu alcance,
e com a sua luz dourada cobre os meus
sonhos de desvanecimento.
E preenche, e ilumina cada uma das gotas cristalinas de orvalho
que caem incontáveis em cada madrugada,
dispersas, como jóias preciosas.
Pedaços simbólicos de promessas breves
e vãs...

Mas por ora apenas a lua me acompanha
dançando ao sabor duma canção
escrita não sei quando
e há muito esquecida.
Assombrosa melodia que ecoa tão profundamente
dentro dos meus ossos
e ressoa na minha alma...
notas que se entrelaçam, docemente dolorosas
em cada batida do meu coração
sempre inquieto.

E dança sempre, no fluxo e refluxo das marés
e no próprio núcleo de mim
florindo como cada lua cheia
batendo, como cada onda bate
tão longe daqui
em margens que só elas conhecem...
até que um novo sol
as desvaneça novamente
interrompendo a dança cósmica,
rasgando o mapa em que encontrei
o meu caminho para casa
e forçando-me conscientemente
a responder a esta
chamada interna
e a ser surpreendida
pelo despertar...

SLL

terça-feira, 3 de junho de 2014

Perto do Coração Selvagem



“Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas inquietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito – imagino já sem lucidez – minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrei a vida, pois? Mas, mesmo assim na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. (...) Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”

Clarice Lispector - Perto do Coração Selvagem

Confissão de Joana d'Arc



Levanto os olhos ao céu azul e ainda vejo a minha armadura brilhar de tão alva...
Sim, eu sei que ultrapassei todas as restrições e barreiras
e as visões que os meus olhos viram
a mais ninguém pertencem.
Não há homem ou mulher que veja assim como eu...
Não preciso de um sexo para me afirmar,
podem ver em mim macho ou fêmea conforme lhes aprouver,
porque eu sou como os anjos. Eu defino-me.
A minha têmpera é tão aguçada como a de qualquer homem
e a minha voz forma um grito de batalha que Deus reconhece.
Fui guerreira em época de lutas
porque mais ninguém levantaria a sua espada para curar a terra e a humanidade.
Enfrentei o inimigo no campo de batalha,
e nas cortes cruéis de gente empedernida
numa época de costumes escritos por um idiota qualquer.
Talvez num outro tempo, além no futuro eu pudesse ser livre.
E agora, aqui estou no meu próprio campo de morte
o tempo deixa cair a areia da sua ampulheta, as chamas esperam-me
e eles dizem que vou arder no inferno.
Mas que inferno será esse, que acolhe os justos?
Será o ser eu mesma assim tão perversamente horrível?
Quais serão as normas em tempo de guerra,
numa época de batalhas que não tem fim?
Reinos ascenderão e vão cair como árvores abatidas,
mulheres serão mortas, estupradas,
idosos e crianças violentados na sua essência e eu...
eu já nada poderei fazer.
Não consegui ensinar os homens a respeitar a vida.
Deixem-nos chamar-me bruxa e herege, não me importa,
eu conheço meu coração
e tenho as setas do amor penduradas na aljava...
e, para onde quer que eu vá
trarei ainda a batalha nas almas de quem ficar.
Ensiná-los-ei a lutar contra aqueles que temem a justiça e a verdade
porque eles não me podem fazer curvar,
eu não sou mulher nem puta,
mas uma forma qualquer de anjo que Deus entendeu enviar
para terminar o ciclo interminável de dor dura
e os justos conhecerão a dignidade da minha alma!

SLL

Cartas de Desamor... (no meu feminino)



Lembra-se de lhe ter explicado que a vida toda( até que a própria vida me provasse o contrário...) sempre sonhei ter, um dia, um casamento feliz, ser óptima dona de casa, blá, blá, blá ?

Pois...eu estou mesmo apaixonada: a minha casa cheira a cera...que eu adoro chão de madeira bem encerado e o cheirinho a cera quando se chega a casa...e não é que pensei: "hummmm...ele deve gostar de chegar a casa e cheirar a cera...deve lembrar-se da casa do avô das cerejeiras...

Que tola...não sei porquê acho que sou "clássica" em certas coisas e estas coisas de dona de casa...são apenas algumas delas ( com a devida ressalva para as gripes da zona dos congelados....que, como lhe disse, só me deprime).

Acho que você tem ar ( e qualquer homem que tenha dois dedos de testa...) de gostar destes odores "clássicos" ao entrar em casa....acho que deve gostar de chegar e ser recebido por um abraço apertado...um jantar feito com ternura...drianças devidamente tratadas e de banho tomado, cheirosas e contentes por vê-lo...e um serão repleto de ternura, a saber como correu o dia para ambos...depois de deitar os pequenos...e antes do resto da noite!!!

Agora diga-me cá se isto não é uma "caretice de um pensamento"...

Mas é o meu, que hei-de fazer? a imagem de um casamento por amor: serões à conversa, jogar às cartas, ler na cama, escrever, estar ao lado a conversar sobre o que quer que seja...estar...mesmo que sem abrir a boca...estar apenas e sentir a presença do outro...

Gosto muito de si!!!

J. Orlando Rocha in "CHATices"

Ensaio Sobre a Solidão



…depressa me canso de mim… olho à minha volta e só vejo recordações… uma terna claridade invade o meu quarto e me rodeia de mansinho… já reparei várias vezes: vem sempre acompanhada do silêncio!… nunca soube o porquê de tal evento… é uma luz difusa, lenta, como que surgindo a medo e com ela, um opaco silêncio… algo que nada traz a não ser paz… mas vir com ela já é bom… e é nesses momentos que me sinto só… e sabem porquê?… porque não tenho com quem partilhar esse momento!… algo que sempre desejei fazer um dia na minha vida: partilhar a minha solidão… dizer a alguém: “…Vês?… Estás a ouvir?… A minha solidão está aqui, é isto que vive aqui comigo… Entendes?…”… mas nunca consegui e nunca o consegui porque nos momentos em que a solidão me visita eu nunca estou acompanhado… engano, estar acompanhado estou mas apenas de mim mesmo e dessa luz e desse silêncio… já somos três… estendo-me então no leito dessa luz e deixo-me levar pelo barulho do silêncio que me invade… nunca é tarde para experimentar novas sensações, só que esta é já demasiadamente minha conhecida e então apenas nos olhamos e nos aceitamos mutuamente… nada mais fazemos senão partilhar aquele momento, uma partilha a três numa solidão solitária de um só… estendido nela e com o silêncio deitado a meu lado, olhamos o tecto que lentamente se separa de nós em tons de cinzentos cada vez mais escuros… passo os braços pelo silêncio e aperto-o de encontro ao meu peito… sinto o seu respirar lento e compassado… é um som simpático, eu sei, mas ao mesmo tempo ousado na medida em que invade o som do bater do meu coração… e o silêncio deixa de ser silêncio para ser um baque surdo ritmado aqui, ao meu lado, deitado… no entanto, continuo abraçado a ele e ele sente-se bem porque acarinhado… é um abraço puro mas forte… ingénuo mas apaixonado… é apenas um abraço de silêncio compartilhado num leito de claridade a escurecer em lentos tons que tem o anoitecer… porém, já quando o tecto se separa de nós e nos abandona entregues que ficámos à luz das trevas que entretanto nos envolvem, o silêncio se aperta contra mim e me possui… penetra-me fundo e a respiração torna-se ofegante, sufocante… o que até então era um prazer compartilhado passa a ser dor e algo que corrompe… penetra-me cada vez mais fundo e a dor aumenta… o bater e o som do meu coração ultrapassa o silêncio que entretanto se esvai num orgasmo de sons delirantes de espasmos gigantes que se avolumam dentro de mim… o tecto já não existe, a obscuridade ainda persiste com mais intensidade… é um estar sem vida, sem morte e sem idade… apenas habita em mim numa eterna cumplicidade… respiro o espaço que me rodeia… e a escuridão cai sobre tudo e me envolve como uma teia… já tenho mais uma companhia… o doce sono vem de mansinho amparar meu corpo e cobre-o com carinho… adormeço lento, extenuado de tanta amargura, numa vã procura do próximo amanhecer que de novo me vai trazer o fim de tarde, neste terno ciclo de amor e ódio em que espero pela eternidade…

Joaquim Nogueira - "Em ti, Mulher, eu me Eternizo"

Reflectindo



Sei que devia abraçar a ligação dos Homens ao brilho reflectido no espelho,
pelas condições universais da nossa mera humanidade
egoísta e egocêntrica,
em busca da harmonia possível nesta vasta vizinhança...
Mas isto significa que, a maior parte das vezes,
eu reconheço a escuridão que se oculta
por detrás da luz que todos crêem tão pura...

E nem mesmo eu sou suave como a seda dourada com que teimam em vestir-me
porque também pertenço a esta mesma humanidade.
Mas recuso-me a deixar estes pensamentos difusos permanecer comigo
apodrecendo e maculando a minha alma.

Sim, eu abordo de frente o risco, sem medo de parecer ousada
e não me escondo atrás de outros rostos que empunham as bandeiras das minhas causas...
Se sorrio, sabem que sorrio, se choro, para mim o guardo.
E se me deparo com um comentário vulgar aqui e ali, no tempo,
não lhe permito que queime e fira a minha mente
pois que o meu desprezo vai para a falta de humildade
e para aqueles que não sabem pedir desculpas.

Gostaria de poder agora, neste momento,
mergulhar as minhas mãos na luz da aurora
e espalhá-la à minha volta, dissipando as sombras mais profundas,
pois é aí que se escondem os covardes.

Mas permanece tudo igual, enjaulado e cego
por detrás da escuridão macia e silenciosa...
e todos se tornam mais e mais selvagens, neste mundo
onde o dia e a noite são uma e a mesma coisa
mas não poderiam ser mais diferentes,
quando terminar a estrada que leva ao fim da minha vida.

SLL

A Preto e Branco



Puxei de um envelope que tinha sobre a mesinha de cabeceira e coloquei-o à sua frente, sobre o lençol. Perguntou o que era.
Abre, respondi a sorrir. Trémulo, abriu o envelope com a excitação de quem tira os laços dourados das prendas de Natal. Sem fala, retirou do seu interior um naipe de fotografias a preto e branco.

E ali reviu no papel impresso, o meu corpo nu, na saudosa beleza dos meus vinte anos, rendido que estivera em tempos ao seu olhar por detrás da máquina fotográfica. Os seus olhos bebiam a textura mate do papel e as mãos tremiam cada vez mais. Pela sua cabeça deviam avivar-se em cascata as memórias de tardes loucas em que me fotografou no meu quarto em poses sensuais. Os rolos ficaram guardados junto dos meus diários. Escondidos em sucessivas gavetas. Só agora me atrevera revela-los. O jogo de sombras resgatava agora da memória as linhas de um corpo firme, jovem, excitante… Afonso revia uma e outra vez cada uma das fotos. Eras linda, ousou dizer. És linda, corrigiu com um sorriso. Linda e louca, sublinhou. Pegou-me nos cabelos, puxou-me até ao seu rosto e beijou-me, de uma forma quente, quente, como eu sempre recordara o seu arrebatamento de outrora.

O seu corpo aqueceu o meu corpo e voltámos a fazer aquele amor gostoso, com o cheiro húmido dos tempos em que lhe insuflava vida com as minhas loucuras de adolescente e ele me ensinava o fino recorte de um amor maduro, em que o tempo escorria suave e se conjugavam em paz os cinco sentidos. O corpo do Afonso já não tinha a mesma firmeza, mas o amor não tem corpo e o fulgor não envelhece no tempo. A boa fruta torna-se madura e passa a fazer delícias em compota. 


João Morgado In: Diário dos Infiéis

De Onde Chegam Estas Palavras



De onde me chegam estas palavras?
Nunca houve palavras para gritar a tua ausência.

Apenas o coração pulsando a solidão antes de ti 
quando o teu rosto doía no meu rosto 
e eu descobri as minhas mãos sem as tuas 
e os teus olhos não eram mais 
que o lugar escondido onde a primavera refaz o seu vestido de corolas. 

E não havia um nome para a tua ausência. 
Mas tu vieste. 
Do coração da noite?
Dos braços da manhã? 
Dos bosques do outono? 
Tu vieste. 

E acordas todas as horas. 
Preenches todos os minutos. 
Acendes todas as fogueiras. 
Escreves todas as palavras. 

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos 
Quando toco o teu corpo 
e habito em ti 
E a noite não existe 
Porque as nossas bocas acendem na madrugada
Uma aurora de beijos. 

Oh, meu amor,
Doem-me os braços de te abraçar,
Trago as mãos acesas,
A boca desfeita

E a solidão acorda em mim um grito de silêncio 
quando 
O medo de perder-te é um cordel que pisa os meus cabelos 
E se perde depois numa estrada deserta 
por onde 
Caminhas nua
Como se estivesses triste.

Joaquim Pessoa

Fim



Que belo soa este silêncio que envolve o mundo ao meu redor
enquanto o sol se põe.
É que hoje, finalmente,
enterrei um sonho
numa cova rasa de pó
debaixo de uma árvore
num bosque sussurrante
E uma árvore é só o que preciso.
Nada mais.
Afinal, aquilo em que eu acreditei
durante tanto tempo
que daria um longo romance,
durou apenas uma ou duas páginas.
E enquanto me afastava daquele lugar,
creio que já me esqueci do que lá ficou.
Fosse lá o que fosse, ou é, ou será para sempre
confundiu-me tempo demais.
Mas agora compreendo.
Esta noite vai nascer sem lua
e eu não me darei ao trabalho de acender uma vela sequer.
Afinal de contas,
aquilo que pensamos oculto, está desvelado
mesmo à nossa frente...
o véu, encontra-se nos nossos próprios olhos.
E enquanto me desfaço desta meada
e deixo para trás um rasto de fios partidos,
percebo que não foi uma atracção
mas sim um transtorno emocional
desfeito pela frieza e indiferença.
Afinal, não poderia ser pior
do que o próprio amor....

SLL

A Repartição



As senhoras atrás do balcão carimbavam, escreviam, explicavam fazendo gestos com os lápis, interrompiam-se às vezes para atender o telefone ou consultarem formulários, tudo isto sem grande ruído, sem atropelos, sem desordem. Eram três horas, havia sol lá fora e uma árvore bonita no passeio, com cachos de flores. Como se chamava?

Foi à tarde porque lhe disseram que havia menos gente do que de manhã, e achou um bom conselho visto que tirou a senha número 23, que não lhe pareceu demasiado alto. A repartição era uma sala relativamente grande, com cadeiras de plástico e, atrás do balcão, cinco senhoras, cada qual debaixo de uma placa, suspensa do tecto por duas correntezinhas. Nas placas os números 1, 2, 3, 4 e 5. A meio da sala um écran com o número 9 aceso. A certa altura o écran tilintou, o número mudou para 10 e uma velhota, que ocupava uma das cadeiras de plástico, aproximou-se da senhora sob o número 4, visto que, junto ao 10, apareceu um 4 a palpitar. As cadeiras de plástico achavam-se todas ocupadas, havia algumas pessoas à espera de pé, uma ou duas crianças mais ou menos sossegadas, um sujeito de jornal sob o braço a aperfeiçoar os dedos com um corta-unhas. De tempos a tempos, atrás do balcão, passava um homem atarefado, transportando papéis que desaparecia numa porta invisível, sem olhar para ninguém. As senhoras atrás do balcão carimbavam, escreviam, explicavam fazendo gestos com os lápis, interrompiam-se às vezes para atender o telefone ou consultarem formulários, tudo isto sem grande ruído, sem atropelos, sem desordem. Eram três horas, havia sol lá fora e uma árvore bonita no passeio, com cachos de flores. Como se chamava? Com o número 23 na mão tentou calcular o tempo que demoraria a ser atendido, porém o número 10 da velhota não havia maneira de passar para 11 e todos os lugares de atendimento se achavam ocupados por criaturas de que apenas conhecia as costas, mais ou menos inclinadas para o balcão, resolvendo decerto questões complicadíssimas visto que intermináveis, obrigando as funcionárias a interrogarem-se umas às outras, a repetirem impressos, a carimbarem mais, uma delas, que usava óculos, coçava o nariz com a haste, lançando em torno olhares perplexos, até se decidir por uma emenda hesitante. Às quatro horas continuava a existir sol lá fora e todavia a árvore bonita já não lhe afigurou tão bonita, nem lhe interessava especialmente o nome nem os cachos de flores. Como as cadeiras de plástico não vagavam as pernas principiavam a doer-lhe, quer dizer, não bem dor por enquanto, um peso, que tentava compensar apoiando-se mais ora na esquerda, ora na direita e rezando para que, encostando-se à parede, a parede o auxiliasse a aguentar parte do incómodo. A certa altura até lhe passou pela cabeça acocorar-se no chão, como os meninos e os ciganos, mas claro que não o fez, por vergonha, por decoro. Limitou-se a sorrir, para dentro, na direcção da infância embora, no sentido em que julgava achar a infância, encontrasse somente uma casa fechada, sem vida, e um tanquezinho de lavar roupa cheio de folhas mortas: tinham saído da vila há imensos anos, depois de uma questão dolorosa de partilhas, recordava-se da mãe, ao subirem para o comboio

- Nunca mais ponho os pés aqui

e a casa para lá ficou, solitária, a decompor-se, sem um eco de passos nas salas vazias. A avó bordava à noite, havia um gato chamado Marau, que se não roçava por ninguém.

E de pouco mais se lembrava. Pela primeira vez teve pena de não se lembrar. Às quatro da tarde a placa número 1 recebeu a senha número 11, e o tilintar do écran afigurou-se-lhe o som mais alegre do mundo. Cuidou que uma das cadeiras de plástico finalmente vazia, que poderia sentar-se: por azar a senha número 11 estava de pé também: era uma mulher gorda, que caminhava amparada a uma canadiana e até então se mantivera, quase sem interrupções, de olhos fechados, numa careta de sofrimento. A mulher gorda demorou séculos a alcançar o balcão e, alcançado o balcão, a enganchar a canadiana no rebordo.

À medida que os minutos andavam as pessoas à espera parecia-lhe que se modificavam: talvez fosse da luz diferente lá fora, da tarde que começava os preparativos complicados de se transformar em noite, da repartição na qual, por não acenderem mais nenhuma lâmpada, escurecia um bocadinho ou, pelo menos, transmitia a impressão de escurecer um bocadinho. Um bocadinho, não: de escurecer sem cessar, até só distinguir o écran onde o número 11 continuava, as silhuetas dos clientes nas cadeiras de plástico e as cinco senhoras, quase invisíveis. Já no escuro completo um telefone tocou.

Nenhuma das senhoras atendeu, de modo que continuou a tocar nos soluços de pavor de um bebé eterno, abandonado nas trevas da repartição. E, tirando o bebé, agora que era noite na rua, a única coisa que persistia no mundo, para além da sua infância morta, era um cachozito da árvore que ia tombando, pétala a pétala, no passeio.

António Lobo Antunes

In Sexus Veritas



- Ele é o homem da minha vida.
- E como está?
- Exactamente igual.
- Dói muito.
- Dói. Mas basta saber que está.

Pedro de Chagas Freitas
(Dói, mas basta saber que está: aqui está uma boa definição de amor.)

Como Num Sonho



Quero amar-te de forma perigosa
em fantasias libertas e intimidades improvisadas,
no meio daquela cascata brilhante
durante um pôr-de-sol azulado.

Quero
inverter as fases da lua
em pensamentos selvagens
naquela água fresca e espumosa,
onde por breves momentos
ficamos suspensos, vazios de vida...

apenas intenções inescrupulosas
e desejo insatisfeito
preenchem a urgência
que existe
no lado mais escuro dos sentidos.

Numa meia-noite qualquer,
depois da troca de olhares...
desabrocham flores naquelas águas:

cascata e rio,
rocha e mar,
e ondas que se movem como silhuetas
em escuridão densa e profunda
por dentro das veias que pulsam,
confundindo os corpos com a aurora que surge
qual clímax que navega pelo mar alto

no desenrolar da realidade...

SLL

Partidas



Ela deixou-me…

aos poucos, um bocadinho de cada vez, um pedaço em cada dia.
O calor que me transmitia quer eu dormisse ou me pensasse excitado foi-se diluindo. Afastou-se como se eu não o percebesse ou ela não me entendesse.
Foi desaparecendo todos os dias. Foi assim que a natureza a fez. Por que havia de ficar se nunca antes o fizera?
Por mim, fui-me mantendo por perto. Tranquilo como o desejo permite. Aparentemente desinteressado como se a sua temperatura não tocasse a minha. Uns pingos de chuva, nesse tempo, caíam como temporal em clima tropical.
Mas foi. Tinha de ir porque é esse o ciclo que nos incompleta quando nos encontramos cheios.
Foi há poucos dias.
Voltará depois do frio em que me esquentará e da esperança que não sei se renascerá.
E ela continuará a ser como e o que era dantes e eu ficarei sempre sem saber se voltarei a ser como dantes era.
Quero e creio que o ciclo da vida se manterá.

O Verão deixou-nos como sempre na data prevista. E vai sereno o Outono.

J. Orlando Rocha

Ainda que Mal



Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

O Amor, Meu Amor



Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.

Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"