quarta-feira, 28 de maio de 2014

Caixinha Preta...



...Eram extremamente apelativos; estavam ali à minha disposição; em cima da mesinha de cabeceira. Era uma caixinha escura que ela usava para ter à mão os comprimidos que a faziam dormir. Nunca liguei qualquer importância ao valor daquela c
aixinha e, no entanto, ela continha o passaporte para uma viagem, uma sem retorno. Nunca houvera pensado nisso, excepto naquela noite; uma noite em que ela não estava ali deitada comigo (nunca mais estaria); uma noite em que acabara de chegar de mais um bar e depois de ter ingerido um bom pedaço de álcool para me aquecer a alma tão fria e tão dormente que já nem a sentia. Também, para que queria eu uma alma? Que é que ela me dá ou me faz? A caixinha preta continuava ali. Quantos comprimidos teria ela deixado desde a última vez que a encheu depois de os tirar da embalagem de marca do medicamento? A minha mão direita estendeu-se para aquela caixinha preta tão apelativa como tão consoladora pelo imaginário que já me estava a provocar. Não custaria nada e dormiria para sempre; tão bom. Era disso que eu estava a precisar ou seria de mais um pouco de gin? Mas para tomar os comprimidos eu precisava de beber alguma coisa e essa coisa estava também ali à mão; debaixo da cama, talvez também deitada no chão por cima do tapete; teria ainda algum líquido? O suficiente para engolir os comprimidos? Já não tinha forças para me levantar e ir buscar outra garrafa. A caixinha preta continuava ali e a minha mão já estava em cima dela. Senti aquela textura (penso que era marfim) sob os meus trémulos dedos mas senti-a fria e um arrepio percorreu-me a coluna; ou teria sido outro tipo de arrepio? Não sei quanto tempo estive com aquela caixinha na mão. Não sei quanto tempo demorei a tomar uma decisão. Não sei quanto tempo a olhei com um turvo olhar. Não sei porque razão não a segurei. Dei por mim a olhar para ela sem saber para que é que ela servia e naquele momento apenas me apeteceu dormir; tão perto do derradeiro sono; tão desejado; ali tão à mão... Reparei então que estava deitado sobre o lugar dela com o braço direito estendido para a mesinha de cabeceira segurando a caixinha preta que continha o passaporte para a derradeira viagem; tantas vezes assim estivemos; tantas vezes senti o seu calor, o seu respirar, o seu arfar; tantas vezes assim ficamos depois de fazermos amor. E, neste estúpido momento, repetia aquela posição estendendo a minha mão para uma viagem. Não consegui conter o choro; não consegui aguentar as lágrimas; não consegui segurar a caixinha preta. Não consegui partir. Restou-me a certeza que no dia seguinte teria mais uma noite de frio...

Joaquim Nogueira

Pedaços de Diário



Por isso acredita, há um anjo que te pega na mão e que sabe os teus caminhos
- fecha os olhos, sente-o, escuta-o, há uma lasca de luz a amparar-te a alma.
Quase nunca a vemos, é invisível, intangível, mas repara, por vezes pode estar dentro de um amigo, é que os anjos pedem a mão emprestada para nos acariciarem, para nos tocarem na carne, eles que não têm carne. São gestos humanos, mas afagos divinos que nos salvam.
Queria ser a mão do teu anjo e salvar-te, mostrar-te o caminho!
Gaivota, queria ser a mão do teu anjo, libertar-te dessa escuridão em que te deitas, desse sonho apagado em que te escondes… »

João Morgado, In - Diário dos Imperfeitos

Mansidão



Encontrei a minha solidão numa praia tranquila e deserta.
Um canto perdido algures, onde pude deixar correr lágrimas que, quando tocadas pelo sol,
reflectiram o meu mundo em cambiantes de cinzento.
Foi aí que te encontrei, observando em silêncio a partir de um ponto que eu não havia visto antes. E amei-te!

Nos fluxos e refluxos das marés interiores, mergulho agora a caneta no tinteiro do teu desejo infinito.
Quero escrever-te a história de um tempo que jamais foi contado
onde sentimentos ocultos se desdobram na tinta da paixão que flui em mim esta noite,
para que te possa transmitir a sensação da minha necessidade de ti
como se pudesses entrar no meu coração e sentir através dele.
Vem passear na praia comigo, nesta noite de tinta e de lágrimas e de intensas melodias...
Vem mergulhar na chama alta de cem velas brilhantes, em que todas sustentam a vibração de uma energia sem futuro nem passado.

E escreve-nos o contraponto para as sinfonias que combinam os nossos corpos num prazer que tudo envolve
e se misturam com letras de prosa agridoce por momentânea...

Estas árias que foram trazidas das altas colinas, para que as cantes aqui neste tempo-espaço entre o espaço e o tempo da Vida.

Tenho fome de escrever poemas sobre o poder do amor no pergaminho quente e flexível da tua pele,
palavras secretas que apenas tu compreendas.
Quero fazer das minhas mãos as tuas palavras até que a caneta seque e eu regresse para a encher novamente nesta tinta feita de fogo,
para a caligrafia do desejo.
Afinal, a minha vida está gravada com avanços e recuos na areia desta praia,
que durarão eternamente,
e onde um só ser é feito a partir de dois...

SLL

O Amor



O Amor...

É difícil para os indecisos.
É assustador para os medrosos.
Avassalador para os apaixonados!
Mas, os vencedores no amor são os
fortes.
Os que sabem o que querem e querem o que têm!
Sonhar um sonho a dois,
e nunca desistir da busca de ser feliz,
é para poucos!!

Cecília Meireles

Tempo



… o tempo passa demasiadamente depressa… quando damos pelo facto, seja ele qual for, o tempo esvaiu-se e quase não o vimos passar… quando não o vemos passar porque ele foi usado em positiva vivência, é óptimo recordar esses momentos que não vimos passar porque o tempo estava a ser ganho por algo bom que recordaremos com prazer… porém o tempo voa e quando damos por ele, ele já passou e já são horas de dizer um novo adeus, um até breve, um até depois… fica o sabor de tudo o que se viveu… fica a saudade desses momentos… fica a ânsia de que eles voltem depressa mais uma vez… e quando o tempo de viver esses doces momentos acaba, fica em nós a presença do outro, o cheiro, o sabor, o tacto, o som e a imagem que fixamos com ternura para, no mínimo, a levarmos dentro de nós… até ao próximo encontro… no entretanto, fica o aceno, o olhar para trás, o dizer aquele adeus com a mão estendida e o rosto, apesar de tudo, sereno e com um sorriso nos lábios… o acenar até que a esquina surge e o passo continua calmo no percorrer daquela rua…

Joaquim Nogueira

Reflectindo



Na hora mais profunda e fria da madrugada, volto a sentar-me e a escrever.
Ritualmente, acendo um cigarro e nesta penumbra monocromática
vejo desprender-se o fumo dos meus lábios húmidos com as coisas que nunca disse.
E aqui estás tu de novo, flutuando na minha mente... embora à minha frente, tenha apenas imagens.
Imagens que me atraem para ti, mas que pouco são mais que um vislumbre do que tu realmente és.
Com um suspiro profundo, sopro pétalas nos teus olhos cansados, e desprendem-se fragmentos de aromas esquecidos que te envolvem... que eu conheço.
E fecho os olhos, invoco-te e afogo-te em mim,
anseio-te face a face, aprofundando o nosso olhar, faísca calma que fica depois do amor e antes do sorriso...
Como explicar as emoções graciosas, loucuras olfactivas e tempestades do coração
ou descrever sentidos atentos e curiosos
do que resta do desconhecido...
ou até descobrir qual é a distância entre os meus pensamentos e as tuas mãos?
Talvez um dia, a anos luz daqui, possivelmente submersa em ravinas nebulosas, a minha alma viva acima de mim, sem memória.
E onde não haja sinal de nenhum dos sentimentos que me assolam agora.
Mas hoje, Hoje ...
os pensamentos correm através de mim como cascatas aquecidas.
E de olhos fechados, sinto-te quase aqui, tocando a minha pele, respirando o perfume criado a partir do nosso amor.
Que dirias tu de tudo isto, meu amigo-cúmplice?
Por mim, direi apenas que te amo.
Amo-te com mais paixão do que todas as histórias de amor de antigamente, ou até mesmo de agora.
Para ti, estarei sempre para além de amante e de mulher, fora da tua pele, além de qualquer sonho e de mim também,
como tinha de ser,
e é!

SLL

Soneto do Amor e da Morte



Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

Sem Sentido



Ninguém pode autenticar o que deve ser visto por ti próprio
a partir da constelação do teu mais profundo Eu.
Desvelado e descoberto, o mistério de tudo,
torna-se lâmpada, guia do tempo indefinido
na compreensão da natureza fractal,
ou numa metáfora em espiral no eixo do mundo.

O produto em branco desta tela infinita, mente.
Tu, és mais que uma página em branco no jornal do tempo...
e deixas a tua marca nas paredes das compridas galerias a branco e azul.

A vida é um livro de memórias escrito a tinta, gravado no tempo...
Na nossa eternidade permanente.
Sim... eu bem sei que as passagens manuscritas estão sujeitas a mudar de forma,
mas há nestas uma continuidade, uma assinatura,
como que pulsando através das páginas...
...Como um coração que bate.
E contém a única origem de todas as coisas vivas e verdadeiras:
o Amor Omnipresente.

Os dias progridem e encontro-me constantemente no lado oposto ao resto do mundo.
Uma disfunção irrelevante, continuamente em busca de equilíbrio
através das questões do coração.
Assim, tudo o que existe intrinsecamente, liga
um fio dourado de amor e de perda e de recuo
à luz desdobrada de melodias escurecidas.

Em todas as coisas, o coração mantém chaves de portas
constantemente perdidas
como os raios de sóis iniciais ao longo dos tempos.
Portas misteriosas e portas aparentes,
cerrando as nossas vidas quebradas.
porque afinal nada passa de uma fachada cruel,
que deixou muitas páginas vazias,
girando e girando...
em fundo azul...

No final do meu dia, desenho pequenos nadas, nas agonias em branco.

Pudesse alguém ouvir os meus gritos silenciosos e
levar-me para fora deste torno implacável
em que qualquer sorriso terá sempre um sabor amargo.

Talvez um dia tudo possa fazer sentido
talvez um dia possa eu ser tão livre como um pássaro.

SLL

Pequenina



Olá, minha criança interior:
Quero hoje falar-te,
para que te recordes que as coisas muitas vezes
não são o que parecem...
nem o que gostaríamos que fossem.

Minha criança, meu eu que já foste,
de alguma forma, a tua realidade,
transformou-se nos meus sonhos...
como os castelos que vias no céu
onde eu hoje vejo apenas nuvens...
Acabei não tendo escolha:
ou guardaria o belo
que os teus olhos abarcavam,
ou sobrevivia.
Ah, se eu pudesse fazer-te então perceber
o que chamamos hoje "condição humana"...
Mas quero crer que nem tudo se perdeu
doce criança...
e apesar destas falhas, aflições,
e angústias que resultam das profundezas da rejeição,
há uma réstia da Luz que ilumina o Homem.
E é isso que agora vês:
- aquilo que outrora começaste!
Quero te dizer mais uma coisa:
- o chão que tu lavraste ficou perfeito,
e toda a lama que atravessaste
foi necessária.
Por mais que tivesses tentado
alterar o rumo das coisas,
e por mais que eu tivesse depois vivido e viajado,
chegaria sempre a altura em que a vida dá a volta
e nos torna conscientes do caminho a percorrer.
Se algo me deixa tranquila,
é poder dizer-te agora
que fizemos juntas um bom percurso,
embora não tenha sido nem simples nem fácil.
Mas isto não é definitivamente
o fim da nossa luta...
O que faço agora é parte natural do destino do Homem,
este malabarismo dual
até o dia em que a Morte chegar.
até lá, ajudemo-nos uma à outra
tu que foste e eu que sou.

SLL

Porque te Amo



…amo-te porque te amo… porque me sinto bem quanto te olho… quanto te toco… quando te beijo… quando sinto a tua pele perfumada junto da minha… quando te vejo sorrir para mim… quando ouço a tua voz… quando te ris… quando me tocas, me acaricias e me fazes sentir homem… amo-te quando me dizes que também me amas, quando me dizes gostar de mim, quando me olhas e vejo no teu olhar a tua alma e o reflexo da minha… quando sabemos que nada mais no mundo nos importa… quando sentimos que tudo o que gira à nossa volta está parado e somos o centro de tudo… amo-te quando te digo que te amo, quando te sussurro palavras ternas, quando ouço as que me dizes… amo-te quando me dás um mimo, um sabor, o roçar ao de leve ou mesmo forte… amo-te porque te amo… porque te sinto bem quando me olhas… quando me tocas… quando me beijas… quando sinto que sentes a minha pele… quando te sorrio… quando ouves a minha voz… quando me rio… quando te toco, quando te acaricio e te faço sentir voar… amo-te quando estou aqui ou aí… amo-te mesmo quando não estamos ou não somos… amo-te porque sei que te amo, porque sinto que te amo, porque vivo esse amor duma forma terna, doce, suave e pura mesmo quando os corpos se entrelaçam e vibram em loucura… amo-te assim, tão simples…tão tudo em ti e em mim…

Joaquim Nogueira

Pergunto-te Onde se Acha a Minha Vida



Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.

Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.

E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.

Cecília Meireles, in Poemas

Alvorada



Tudo está calmo hoje, tudo está em paz, não há nenhuma dor preocupante.
Eu amo-te, tu amas-me e as nossas almas estão entrelaçadas, juntas e perfeitas como uma só, encaixando como luvas na nossa mão.
Não há deuses com leis severas e rígidas, reinando do alto de tronos de ouro maciço, em salas hieráticas com altas colunas.
Antes há olhos castanhos, nas sombras que se iluminam quando a luz solar acende as esmeraldas verdes
e quando me olhas assim, nos olhos, todos os planetas se alinham, e ficamos só tu e eu.
Apenas duas pessoas, duas pessoas aleatórias.
E pela primeira vez vi-me na terceira pessoa.
Mas por uma vez, tudo está calmo.

Esta carta que te escrevo será um concerto digno de ti
... e podes sempre tanger o meu coração, se eu for incapaz de cantar, porque eu sou a fonte das minhas lágrimas.
As palavras rasgam.me o peito, brotando como água de sal, misturada nas tintas que se prestam ao cosmos da caneta...
Então, eu vou fazer por ti o que ainda não foi feito.

Como uma única gota de água não anuncia uma chuva torrencial,
esta folha não condensa mais que um simples traço do meu amor.

Ah, mas como é doce, adorável, gentil...
Incomparável, até mesmo para todas as visões cantadas pelos poetas.
Mas, por uma vez, tudo está calmo.

Escrevo dia após dia frases que devolvem vida aos meus olhos...
A meta para a minha busca sem fim neste céu interminável.

Voam para ti os acordes executados a partir da melodia do meu coração
sob a tonalidade infinitamente ininterrupta
que precede as horas de vigília.
A ti, dedico este nascer do sol.

SLL

Para Sempre



- Amar-te-ei para sempre - disse-lhe ele.
- Para sempre, mas até quando? - responde ela.
- Para sempre é.... enquanto viver?
- Não. Para sempre é ... para além da eternidade.

SLL

Saudades



…Tenho saudades tuas… Queria ter-te aqui comigo, a meu lado, de mãos dadas ou de olhos nos olhos… Cingir-te a cintura e apertar-te contra mim e sentir teu corpo… Desejar o teu desejo… Ouvir teu coração bater com a minha face sobre o teu peito… Beijar-te a boca e saber-me dentro de ti… Sentir-me mais uma vez como as muitas que senti… Tenho saudades tuas… Chamar pelo teu nome… Ouvir a minha voz pronunciar esse som e saber-me respondido com o teu sorrir… Estar onde estás e saber-me contigo, aberto de mim para te receber em plenitude… Entrar no teu ser e saber-me lá residente, não ontem nem hoje mas, sempre… Perder-me no teu labirinto e jamais encontrar a saída… viver os caminhos e as esquinas que se cruzassem à nossa frente e deixar de conhecer o tempo que nos cerca… olvidar a dor da ausência do teu doce amar… Tenho saudades tuas…

Joaquim Nogueira

Natal



Penso, penso e penso... e pouco ou nada concluo. Nem sequer sei se pretendo chegar a algum lado com estes pensamentos.
Eis ali um homem, por detrás do véu que separa os mundos. Estranho, como plácido nos observa de outra dimensão onde a aurora nasce neste momento.
Mas eu conheço-o. Quando era menina, ele vinha e lia-me com inabalável determinação os contos de fadas dos livros de capas velhas que havia lá em casa. E olhava-me. Olhava e sorria... e eu acreditava.
Enquanto os seus dedos corriam pelas páginas, o brilho no seu olhar mudava, e ele explicava que nós, confusos andarilhos humanos às cabeçadas à linha do tempo, nunca percebemos quão dolorosamente curto este é.
Matamos aqueles que podiam salvar-nos, louvamos aqueles que nos matam. Todos os dias...
E eu pensava "como é possível".
Ainda hoje penso: - "Como é possível?"
E ontem ele regressou, após anos de ausência... Mas ontem regressou.
Trazia a mesma expressão de afecto de sempre e senti uma dor no peito acompanhada de uma lágrima que caiu.
Ele lembrava-se de mim.
E desta vez, trazia uma mulher com ele. Ao seu lado, mão na mão. Linda, sorridente e afectuosa.
Sentaram-se junto a mim, e enquanto ela pousava a mão nos meus cabelos, ele recomeçou as histórias interrompidas há tantos anos.
Acabei compreendendo que existem contos de fadas durante toda a nossa vida, nós apenas nos tornamos duros demais para os reconhecer, compreender ou mesmo... aceitar.
Ela colocou então as duas mãos na minha testa e senti-me cair numa escuridão profunda. Continuava a ouvir as suas vozes, mas desta vez estava lá e pude ver a raça humana vivendo século após século no medo do desconhecido, da morte, dos pensamentos dos outros, dos seus próprios pensamentos, das palavras.
Temem até o pensamento que vem a caminho mas não chegou.
As mentiras quebradas e os corações endurecidos, o que está para vir, ou não, mas só amanhã...
O desconhecido que flui nas mentes é afinal conhecido, a realidade está ali adiante, a culpa em toda a parte e a razão é uma brasa em lago congelado.
E três espectros reais buscaram que o incenso e a mortalidade se entrelaçassem.
Ela trouxe-me de volta. Os três enlaçámos os dedos e ficámos calados. Mas eles sabiam que eu compreendera.
- Parece tão trivial, um dia que para muitos tem auréola de stress abençoado, manifesta lixo e drama que já não surpreende.
Tenho certeza de que não há neve em Belém, nem a estrela tem um patrocinador...
Ou terá: o Santo Padroeiro da ganância...
Há humanos no mundo, mas para onde foi a humanidade?
Plantamos árvores para depois as cortarmos, há dinheiro para fazer a guerra mas não para dar a todos qualidade de vida.
E onde está a justiça no mundo?
Tornámo-nos tão acostumados a lavagens cerebrais
que nos esquecemos de pensar por nós mesmos.
E enquanto as pessoas se sentam com bebidas e chocolates, a ver filmes em família,
pintam hoje, e mais uma vez nos seus espíritos novas camadas de verniz necessário...

SLL

Diário dos Imperfeitos



... Ele desejou-lhe os dedos como ela lhe desejou os lábios tocados pela poesia, mas Santiago não encontrava uma forma poética de falar da morte.Só tinha palavras pretas e ali tudo era branco, até o paninho de renda na jarra de agua, até o sol, até a memoria dela.«Minha mãe esqueceu-se de mim...», chorava, e ele só com palavras pretas na cabeça. Deu-lhe apenas outro abraço. Branco.
Os abraços puros são sempre brancos ...

João Morgado In Diário dos Imperfeitos

Descrições



Ah, se eu pudesse descrever
a luz, branca,
eléctrica e brilhante
que os meus olhos irradiam,
quando os meus pensamentos
em teias apertadas,
formam sonhos
de natureza empoeirada e silenciosa.

Sonhos,
que flutuam em jangadas
feitas de ar...
mas densos o suficiente
para agarrar,
num momento isolado.

Aprendi
que não serão capturados
durante mais do que alguns segundos.

Sinto-me
como que presa
no momento presente
olhando os meus próprios pensamentos
épicos, extravagantes
que se cruzam
pelas etéreas paisagens
na aridez da realidade...

SLL

O Tempo



Como um peregrino, caminho ao encontro da beira do espaço e do tempo
uma fronteira entre a terra e o céu, que a um só tempo
os une e os separa,
confundindo-os ante os meus olhos.


- Que fazes aqui, tão longe do teu mundo? - Alguém pergunta

- Estou aqui para me entender... e para saber se os meus sonhos têm um lugar para onde ir.

- Responder-me-às com a verdade, e eu dir-to-ei

- A verdade, e somente ela te direi

- Quais são as coisas que te são mais caras
e por elas morrerias sem hesitação

- São 3... todas me são caras e todas me são uma só:
o Divino, que é a minha fonte e a minha força, a Verdade e o Amor,

- A verdade me disseste.

- Responder-me-ás?

- Sim... fá-lo-ei
mas a seu tempo
apenas continua a caminhar...

- Mas porque não mo podes dizer agora?

- Porque eu sou o Tempo... e a mim, ninguém pode apressar.
Mas serei eu quem te dará as respostas que procuras.

- Perdoa-me. Caminharei, então.

- Há algo que te devo dizer agora, por sinal...

- De que se trata?

- Olha para dentro de ti mesma. 
Também tu tens em ti retido o Tempo....

SLL

Imvernáculo



Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

Paulo Leminsky

Silêncio



Shh... silêncio!

Quero silêncio para enterrar a minha alma.
Já não tenho espaço para metáforas, destruí as que existiam e agora só preciso ...
fechar os olhos e dormir um sono sem sonhos.
Cada momento que passa desvanece na obscuridade o que antes foi esperança
foi luz e foi vida...

A noite é fria, molhada e triste... e o meu corpo é fraco
a minha alma está cansada,
o único consolo é que a morte virá em breve.

Sinto-me afundar, num silêncio calmo e amortecido.
Torna-se tudo mais e mais escuro ...
vejo ângulos que me cercam ..
e as lágrimas caem dos olhos dos anjos ..

Eu amei-te por mil dias
e amei-te por mil noites ...
mas agora não sou mais que um anjo de mar assombrado
sem rota, nem farol, nem bússola

E não há uma mão que se estenda.

Dentro desta escuridão a rendição convida,
à medida que a luz diminui
com a morte de cada chama.

Assim deito-me no meu caixão de pinho,
e quando a última brasa fenecer
A noite será a minha Mestra....

SLL

Onde Há Inveja, não Há Amizade



Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo, que le duele. Ora temperai-me lá esta gaita, que nem assim, nem assim achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata somente como alheios de si, e com razão:

Pois somente nos é dada
para que ganhemos nela
o que sabemos.
Se se gasta mal gastada,
juntamente com perdê-la,
nos perdemos.

Enfim, esta minha Senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é,

ponderemos e vejamos
que ganhamos em viver
os que nascemos:
veremos que não ganhamos
senão algum bem fazer,
se o fazemos.

E, por isso, respeitando

que o porvir tal será,
entesouremos ;
porque [ao certo] não sabemos
quando a morte pedirá
que lhe paguemos.

Nunca vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte; sendo mais aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude. Mas, contudo, com seu pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos; que tudo para com ela é um lume de palhas. Nenhuma cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem na maior bonança, como ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras, dando com os corpos à costa; e se vem à mão, com as almas no inferno, que é bem ruim gasalhado:

E pois todos isto temos,
não nos engane a riqueza,
por que tanto esmorecemos,
e trás que vamos;
já que temos a certeza
que, quando mais a queremos, a deixamos.

Gastamos em alcançá-la
a vida; e quando queremos
usar dela,
nos tira a morte lográ-la;
assim que a Deus perdemos
e a ela.

Luís Vaz de Camões, in "Cartas"

Interregno



Às vezes
A palavra cai como fel
Nos desvãos dum tempo inesperado,
Momento entre a graça e a desgraça
Pegajoso e doce como mel,
E a fala não fala do que fala
E a espuma dos lábios
Seca silêncios de raiva
Do sentir e não ter como dizer.

O que há para dizer
Não tem palavras.

AVSousa (foto do autor)

Abraça-me



Abraça-me.
Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que dele fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

Poeminha de Insatisfação Absoluta



O que me dói
É que quando está tudo acabado
Pronto pronto
Não há nada acabado
Nem pronto pronto
Pintou-me a casa toda
Está tudo limpado
O armário fechado
A roupa arrumada
Tudo belo, perfeito.
E no mesmo instante
Em que aperfeiçoamos a perfeição
Uma lasca diminuta, ténue, microscópica,
Não sei onde,
Está começando
Na pintura da casa
E as traças, não sei onde,
Estão batendo asas
E a poeira, em geral, está caindo invisível,
E a ferrugem está comendo não sei quê
E não há jeito de parar.

Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"

Amo



…amo desde o momento que quero amar até ao momento em que decido não amar… para amar é preciso querer amar como quem tem frio e quer calor ou como quem está cansado e quer descansar… tão simples quanto isso: é apenas um acto de exercício de um querer… não amamos por amar ou porque fomos aprender a amar como quem vai aprender uma nova disciplina; só se aprende uma nova ciência desde que se queira aprender; é preciso querer aprender; ninguém é obrigado a amar como ninguém é obrigado a não amar ou até mesmo a odiar… para amarmos é preciso que se queira amar: dizer mesmo – eu quero – e sentirmos que esse é um querer simples e sem artifícios… amar é uma entrega absoluta sem qualquer barreira, mesmo que magoe, que fira, que não seja o que pensávamos que seria… amar é uma dádiva e não um receber o que quer que seja, dando-nos para além de nós próprios mesmo que isso signifique perder alguma coisa… amar pode ser a perda de nós mesmos em prol de alguém que precise mais de mim do que eu próprio preciso e pode significar, portanto, dor, lágrima, choro, tristeza, amargura, infelicidade, desespero, quiçá até mesmo desamor… amar não é sorrir e dizer: Que bom, amo!… amar é dizer eu estou aí em ti e não em mim… amar é olhar para mim e sentir que só faço falta a ti e que me sobro a mim próprio… amar é tão simplesmente isso: querer estar naquele que precisa de mim mesmo que isso queira dizer que me perca, que deixo de ser o que sou ou o que gostaria de ser, mesmo que signifique a dor e a perda que tanto abomino e não desejo… para amar basta apenas querer amar… e a lágrima escorre pela minha face e a dor é forte mas, eu quero amar!…

Joaquim Nogueira

Ninguém Morre Antes da Hora



Ninguém morre antes da hora. O que deixais de tempo não era mais vosso do que o tempo que se passou antes do vosso nascimento; e tampouco vos importa, Com efeito, considerai como a eternidade do tempo passado nada é para nós(Lucrécio). Termine a vossa vida quando terminar, ela aí está inteira. A utilidade do viver não está no espaço de tempo, está no uso. Uma pessoa viveu longo tempo e no entanto pouco viveu; atentai para isso enquanto estais aqui. Terdes vivido o bastante depende da vossa vontade, não do número de anos. Pensáveis nunca chegar aonde estáveis indo incessantemente? E no entanto não há caminho que não tenha o seu fim. E, se a companhia vos pode consolar, não vai o mundo no mesmo passo em que ides? Todas as coisas seguir-vos-ão na morte(Lucrécio). Tudo não dança a vossa dança? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem nesse mesmo instante em que morreis: Pois nunca a noite sucedeu ao dia, nem a aurora à noite, sem ouvir, mesclados aos vagidos da criança, os gritos de dor que acompanham a morte e os negros funerais (Lucrécio).

Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

Quem não Ama não Vive



Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.

Andam pétalas e fôlhas
Bailando no ár sombrío;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.

Em tudo vejo Saudades!
A terra parece mórta.
- Ó vento que tudo lévas,
Não venhas á minha pórta!

E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim cahidas,
Restos de um grande festim!

Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licôr!
- Que importa morrer amando,
Que importa morrer d'amôr!

E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
- Morro mas levo commigo
Alguma cousa de ti.

António Botto, in 'Canções'

Entende



Ser-se prisioneiro do passado é uma viagem carregada com circunstâncias traiçoeiras.
Há que evitar a mentalidade derrotista de autómatos, mas tudo aquilo por que ansiei está perdido.
Um holocausto, agora paralisado pela derrota depressão e drama.

Lá fora, outros vivem sem serem sequer molestados, sem esforços e numa postura aparentemente incontestada provocando-me a paciência.
Eu tinha o mapa com o caminho traçado, mas desapareceu... não por acaso.

Medimos as nossas realizações com uma vara cósmica de aferição no presente do indicativo...
Até percebo que tentarás persuadir, clamando a quem puder ouvir, com essa tua cara até sincera mas insensível, que não temos o direito a ser, e que temos de entendê-lo! ...
não ceder a facilidades, ou brilhos ou demónios externos.
Enfim tu sabes...
recuso-me a ser abalada, quebrada ou agravada, mas vós permaneceis sempre indecisos e numa teimosia atávica ou genética de ficar ali, aferrados, apesar das escorregadelas e tropeções frequentes.

Mas o que faremos, se nós temos o nosso próprio desejo?
Devorá-lo e lamber o prato?
Ou encomendá-lo simplesmente na internet e depois deitá-lo fora?

Não posso aceitar esta premissa de espremer almas em caixas e fuzilá-las.
Engajar-nos em esforço é uma experiência de fracasso, que aguarda para causar estragos como uma tempestade furiosa e breve.
Passou, sem que alguém se apercebesse, o tempo da colheita.

Posso ver através de ti e olho para um núcleo emocionalmente danificado por um medo individual e duro, procurando em pressa comprar um bilhete para a aceitação...
Mas esse vôo já partiu e tu não o alcançaste.
Se adiante as cadeias são removidas e a liberdade é alcançada, para quê preocupar-nos com minudências se é apenas para chegar ao fim e ali permanecer?
Plácida e definitivamente mortos...

Já não quero saber se agora estamos vivos, se há ou não há limites ou regras, imposições, fachos e bandeiras desfraldadas...
Afinal hei-de existir proscrita além do tempo.
A minha parede tornou-se uma galeria de olhares e sorrisos fracturados,
e há um cabide vazio onde todas as manhãs penduro a minha alma...
Porque eu sou cada um de vós, e ninguém.
Percebes o que eu quero dizer?

SLL

Ao Entardecer



Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

Alberto Caeiro

terça-feira, 27 de maio de 2014

Eros e Psiché



Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa

Ao Som de Chopin



Tocam música algures lá fora...
parece-me Mozart... ou não. É Chopin.
a melodia é cálida e doce.
Soa como ribeiros mansos
fluindo pelas escarpas.
E eu sonho,
e eu sinto.
Os teus dedos enlaçam os meus
como nós de seda suave,
e tocam-se os lábios...
e a música intensifica-se
acompanhando o rio
explodindo pela espera.
As notas enleiam os impulsos
preservados por séculos
trazidos de volta à luz...
Cegos
por novos ares
nunca suficientemente respirados.
Nunca suficientemente revelados,
mas demasiado fortes
para se tornarem palavras...
ou gestos.
Apenas olhares
e cumplicidades...
íris trémulas e pupilas dilatadas
em desejo
como lâmpadas suspensas
e a música que toca, lá fora...

SLL

Palavras São Armas



A REVOLTA DO PEIXELIM
“Na contradição jaz a esperança”
B. Brecht

O peixelim anda escamado, o mexilhão aturdido; em águas turvas, a vida é difícil para o peixe miúdo e mesmo alguns crustáceos, habituados às marés vivas da pouca sorte, já andam enjoados. É demais! Reclamam.

Os tubarões, temendo tempestades de descontentamento, tentam vender o seu peixe: “que se o mar anda alterado a culpa é do peixe-diabo, que os peixes vermelhos são perigosos, sobretudo indigestos, que o melhor seria não andarem em cardume, que cada qual vivesse a sua vidinha”. Em suma: não fizessem ondas!

Embora não pertencendo à família do mais antigo dos vertebrados, o proletário peixinho-da-horta que, não sendo carne nem peixe, sofre a rebentação do mal-estar que o rodeia, exclama apreensivo: Estou frito!

As piranhas do nosso descontentamento, sentindo-se, perdoem-me a redundância, como peixe na água, trabalham para o peixe graúdo que não esconde o seu agrado por tão profícuo e leal entendimento. Ambos são insaciáveis!

O próprio fiel amigo, que vestia ganga, aparece-nos de alpaca, impante como qualquer jovem executivo, quando investido de alto cargo.

Não está fácil a vida do peixelim. Companheiros de longa data são levados nos arrastões da vaidade, esfolados, esquartejados em simétricos rectângulos e postos no mercado em embalagens de luxo, tal como aqueles pelintras que rolam em luxuosos bólides e enganam o depósito com cinco euros de gasolina.

Entretanto, o peixe miúdo está atento: sabe que há mais marés que marinheiros, que a vida não é um mar de rosas ou de algas – já que mergulhámos o nosso vocabulário no mundo aquático – e que o chamamento das sereias perdeu actualidade.

Tal como os anjos inatingíveis, na imensidão dos céus, receosos do peixe-homem, o peixe-anjo vive na profundidade dos oceanos inacessível aos que procuram milagre em águas mornas, onde a calma é absoluta, mas a pressão insuportável.

Pregar aos peixes!… Mas quem lhes liga? E, no entanto, insistem por todos os meios ao seu alcance. Quem? Os que acreditam que o peixe pequeno ainda os ouve.

Viver tranquilamente à flor da água, usufruindo das delícias do sol e do céu que com o mar se confunde, está vedado ao peixe miúdo. Sonha ser peixe-voador e libertar-se, mas cada vez mais na revolta que interioriza, sente-se peixe-espinho quando por ele passa o peixe-rei, peixe-ministro ou secretário, soberbos, pavoneando-se com os seus séquitos de sanguessugas que mais parecem esponjas ou lapas, vegetando no bojo do poder.

Agitar as águas, libertar os seus irmãos em cativeiro ou viveiro ou lá o que é, utilizar as vagas com lucidez e determinação e, quando menos se espera, surge o maremoto que, na fúria que transporta, limpa encostas, enseadas, a foz dos rios tudo purificando na ressaca.

Purificar, pois, com esta bela palavra de revolta e de paz: purificação! Não vá alguém pensar que abuso de metáforas ou suspeitar que pretendo insinuar o que quer que seja.

Os trabalhadores não têm nada, absolutamente nada, a ver com esta estória. Juro e faço figas!

Os trabalhadores são combustível e motor da história e manifestam-se lutando pela liberdade, o mesmo é dizer, o direito de usufruir de uma vida digna de ser vivida.

Cid Simões.

Elegia na Sombra



Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memória de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia touca a desgraça.
Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao despertar.
Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incógnita e suprema
Nos enche as almas de dolência e medo
Nesta hora inútil, apagada e extrema?
Os heróis resplandecem a distância
Num passado impossível de se ver
Com os olhos da fé ou os da ânsia;
Lembramos névoas, sonhos a esquecer.
Que crime outrora feito, que pecado
Nos impôs esta estéril provação
Que é indistintamente nosso fado
Como o sentimos bem no coração?
Que vitória maligna conseguimos —
Em que guerras, com que armas, com que armada? —
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Colado aos ossos desta carne errada?
Terra tão linda com heróis tão grandes,
Bom Sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado.
Tanta beleza dada e glória ida!
Tanta esperança que, depois da glória,
Só conhecem que é fácil a descida
Das encostas anónimas da história!
Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguém volta? No mundo subterrâneo
Onde a sombria luz por nula dói,
Pesando sobre onde já esteve o crânio,
Não restitui Plutão [a ver?] o céu
Um herói ou o ânimo que o faz,
Como Eurídice dada à dor de Orfeu;
Ou restituiu e olhámos para trás?
Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das mágoas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das águas.
Povo sem nexo, raça sem suporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça e que aguarda a própria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.
Torvelinho de doidos, descrença
Da própria consciência de se a ter,
Nada há em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.
Plagiários da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que há antes que venha o sono
E o sono inútil que nos deixa frios.
Oh, que há-de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol ocidental
Que houve por tipo o aventureiro e o herói
E outrora teve nome Portugal...
(Fala mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma extrema quietação
Que por ser fim faça menos doer
Nosso descompassado coração.
Fala mais baixo! Somos sem remédio,
Salvo se do ermo abismo onde Deus dorme
Nos venha despertar do nosso tédio
Qualquer obscuro sentimento informe.
Silêncio quase? Nada dizes! Calas
A esperança vazia em que te acho,
Pátria. Que doença de teu ser se exala?
Tu nem sabes dormir. Fala mais baixo!)
Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o rei morto vivo tornará
Ao povo ignóbil e o fará inteiro —
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?
Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lúcidos do Fado?
Quando é que soa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, sem sentir,
Tua voz, como um balouço de palma
Ao pé do oásis de que possa vir?
Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faça sentir o coração?
Quando? Estagnamos. A melancolia
Das horas sucessivas [?] que a alma tem
Enche de tédio a noite e chega o dia
E o tédio aumenta porque o dia vem.
Pátria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração suposto sossegou
Com abundante e inútil alimento?
Quem faz que durmas mais do que dormias?
Que faz que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mão do meu ser que tu amas, que é de ti?
Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um sono
Em que indistintamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.
Dorme, ao menos de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito ter, Pátria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.
Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ânsia sabes ter
Nem da esperança sentes sede ou fome.
Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inúteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme, mãe Pátria, nula e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nele, porque tudo é nada,
E nunca vem aquilo que há-de vir.
Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme que as pálpebras do mundo incerto
Baixam solenes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda desperto.
Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vácuo azul? Dorme, que nada sente
Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, baça e fria
Como longínquo sopro altivo e humano
Essa tarde monótona e serena
Em que, ao morrer o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.

Fernando Pessoa

Desejo II



Beijas-me o pescoço, sussurrando palavras doces ao meu ouvido,
é apenas nos teus braços que eu não sinto o medo.
O medo de estar sozinha, de ter de ser a minha própria valia.
E aqui estou, nesta bem-aventurança acidental
sabendo que perder-te é apenas uma questão de tempo,
mas tu vicias...

Vejo-me em ti enquanto os nossos corpos se enlaçam
é nessa dança contigo que me encontro na pessoa que sempre quis ser
Mas como é possível quando eu mesma não sei quem sou?

E continuam os impulsos que levam à explosão orgásmica
Em que, entre as minhas pernas, o teu sexo lambe a minha ternura
Contigo, tudo é real
e isso assusta-me

Abro os olhos e percebo que és apenas um sonho ...
Minha felicidade acidental... São desejos apenas.

SLL

Desejo



Imagino o teu gosto
como água salgada de oceanos profundos.
Preciso de ter cuidado
para garantir que não me perco nas tuas marés...
Perdoa-me,
se a minha mente se projecta
nesta viagem imaginária
para mais momentos salgados.
Para a perda das roupas e do pudor
quando as mãos se tornam
uma exploração.
Toco-te
como se fosses um instrumento
para encontrar o timbre perfeito
do teu prazer...
Nesta dança delicada,
na sintonia das mãos, dos dedos, dos lábios...
na vibração do tom
que parte da tua garganta, gutural e baixo,
um assalto perfeito aos sentidos
num crescendo...
Aperfeiçôo a afinação,
encontrando o ritmo desta dança primeva, não coreografada,
corpo-no-corpo, começo do fim...
Até que te estendes, saciado e morno
e me abraças
em plena comunhão de almas.

SLL

Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia





Eu hontem passei o dia Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino, Do seu fado...
Depois, para se alegrar, Ergueu-se, e bailando, e rindo, 

Poz-se a cantar 
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma, E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
Elle afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...
Ao longe o Sol na agonia
De rôxo as aguas tingia.

«Voz do mar, mysteriosa; Voz do amôr e da verdade! - Ó voz moribunda e dôce Da minha grande Saudade! Voz amarga de quem fica, Trémula voz de quem parte...» . . . . . . . . . . . . . . . .

E os poetas a cantar
São echos da voz do mar!

António Botto, in 'Canções'

O Que é o Amor?



O verdadeiro amor não coloca condições, não coloca distâncias, não coloca empecilhos.
O amor verdadeiro é livre, livre do ego e da vaidade, da necessidade do "si mesmo"... é altruísta e, colocando a sua atenção naquilo que ama, fá-lo sem apego! Engraçado como isto parece paradoxal. - Mas não o é.
O Amor é todo ouvidos, todo coração, braços e mãos, pernas e pés.
É todo olhos, sentidos.
É inteiro naquilo que é.
É aceitação sem ser resignação.
O amor entrega-se, e quando (se?) o medo se aproxima, anula-o em função de algo maior.
O amor é alegria e não cansaço, é compreensão e partilha. O amor não é expectativas, no fundo, não tem expectativas. "É" simplesmente... e "É" permanência, fluidez, intemporalidade.

Conhece intimamente o perdão, pois que é livre de julgamentos e ignora condenações.
Porque não se impõe, fala baixo, em vez de gritar... E quantas vezes, quantas, não se silencia até a si mesmo?
O amor vai onde a necessidade está, onde a sua "presença" é a chave para sanar a dor. Não é exagero, sabe que os excessos são prejudiciais e conhece as medidas certas de se doar, sem invadir.
O amor transforma. É tolerância e respeito, guerreiro sem armas, força da suavidade e doação profunda.
... O que é o amor?

SLL

Acordar Tarde



Tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou a curva
- e o serviço postal não funcionou no dia seguinte
procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos por assassinos
- e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado dos amantes ocasionais
- nada a fazer irás sozinho
vida dentro os braços estendidos
como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso
simulando a casa onde me abrigo
do mortal brilho do meio-dia

Al Berto, Horto de Incêndio

Apelo



Na outra margem do rio,
(e eu vejo-a!)
há campos vedes de esperança,
abandonados ao calor de um sol eterno...
Na outra margem do rio,
onde não chega o inverno,
há campos ondulantes de searas maduras.
para os pobres matarem nelas
todas as fomes do mundo...
Na outra margem,
Tudo se começa de novo
e não há dias passados
que amargurem os desgraçados.
Não há dinheiro,
E os homens dão-se as mãos,
que pelo dia inteiro
ouvi as canções que os seus lábios entoaram...
Nem raivas mal contidas,...
nem agonias perdidas,
nem dor...
que na outra margem do rio,
há Amor...

………………………………………

E entre mim, e a outra margem,
esta terrível viagem.
Este rio caudaloso, imundo,
sujo de todos os calhaus,
que nele vomitou o mundo...
Entre mim e a outra margem,
O rio…
Ah! barqueiro...
Porque tardas?...
Não vês que faz frio?...
Espero, mas desfaleço…
Não tardes mais barqueiro
Não tardes!...
que é tão longe ainda
a outra margem do rio…

Alda Lara

Sou



Quem sou eu, o que aqui faço...
poder-te-ás perguntar.
só que nunca o saberás
se o não tentares desvendar.
o que é, não o parece
e o que parece, não é
e assim pouco te digo...
anda tu ver como é.

mas lembra-te:

sou o vento que te afaga
o sol que te acaricia
e a árvore que te oferece
doce sombra todo o dia
sou a brisa, sou o mar
e o rio que em ti dança
teu sorriso, tuas lágrimas
que protegem tua esperança
sou o pleno e o vazio
sou o tudo, sou o nada
sou aquela em que te perdes
(a mulher apaixonada)
em teus sonhos, prados verdes
nas noites de madrugada.
sou a flor, eu sou a estrela
sou o sol e sou a lua
sou a alma, sou o ser
sou mulher e sou só tua
sedutora, sensual
mansa e calma, original
saberei os teus anseios
e, num fogo ardente
ás vezes até inclemente,
cumprirei teus devaneios.

SLL

Cântico Negro



"Vem por aqui"
--- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!

Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.

--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.

José Régio

Fluxo de Vento - Portata dal Vento



Eu ouvi a tua voz.
Cruzou o céu e o mar.
Entre espuma branca
ondas traçadas em
rochas erodidas pelo tempo.
Eu podia ouvi-la no vento gelado
de um inverno sem fim.
Na brisa de Março,
vagueava entre as flores.
Levou os aromas e
o perfume de uma terra
distante.
Sentia-o nos ouvidos
de dia e de noite.
Procuravas-me.
Eu escolhi.
Domaste o meu
coração.
Envolvi-me
em abraços apaixonados,
Senti o cheiro
da tua essência
vital.
Então, depois de longa espera,
Eu vi a luz brilhante
dos teus olhos,
brilhar entre as cores
do amanhecer ...



Original em Italiano de Aldo Riboldi
Tradução - Escriba



Ho sentito la tua voce.
Varcava il cielo e il mare.
Tra bianchi spruzzi
di onde infrante su
scogli erosi dal tempo.
La sentivo nel vento gelido
di un inverno infinito.
Nella brezza di marzo,
vagava tra i fiori.
Portava gli aromi e
i profumi di una terra
lontana.
La sentivo nelle orecchie
il giorno la notte.
Mi stavi cercando.
Mi hai scelto.
Hai domato il mio
cuore
Mi hai avvolto
in abbracci appassionati,
ho sentito il profumo
della tua essenza
vitale.
Poi, dopo tanta attesa,
ho visto la luce viva
dei tuoi occhi,
risplendere tra i colori


dell'alba...

As Tormentas



Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais.
ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso
Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós.
E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem!
e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio!
e porá fim à minha vida. 
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio

O Maior Amor e As Coisas Que Se Amam



Tomara poder desempenhar-me, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato subjectivo cuja execução por demorada ou imperfeita me tortura e dormir descansadamente, fosse onde fosse, plátano ou cedro que me cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma saudade e uma aspiração, a consciência de um dever cumprido.

Mas dia a dia o que vejo em torno meu me aponta novos deveres, novas responsabilidades da minha inteligência para com o meu senso moral. Hora a hora a (...) que escreve as sátiras surge colérica em mim. Hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja. Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço, mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma que não soube contar, um coração já apodrecido, morto já e na estagnação da aspiração indefinida, inutilizada.

Nem choro. Como chorar? Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar, febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis fosse grande como o sentimento que eu sinto quando n'ela penso. Nada faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade. Parece um cinismo supremo. Para comigo mesmo tenho um pudor em dizê-lo. Só aqui lh'o registo sobre papel, acanhadamente ainda assim, para que n'alguma parte fique escrito. Sim, fique aqui escrito que amo a pátria funda, (...) doloridamente.

Seja dito assim sucinto, para que fique dito. Nada mais.

Não falemos mais. As coisas que se amam, os sentimentos que se afagam guardam-se com a chave d'aquilo a que chamamos «pudor» no cofre do coração. A eloquência profana-os. A arte, revelando-os, torna-os pequenos e vis. O próprio olhar não os deve revelar.

Sabeis decerto que o maior amor não é aquele que a palavra suave puramente exprime. Nem é aquele que o olhar diz, nem aquele que a mão comunica tocando levemente n'outra mão. É aquele que quando dois seres estão juntos, não se olhando nem tocando os envolve como uma nuvem, que lhes (...)

Esse amor não se deve dizer nem revelar. Não se pode falar dele.

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

Guardador de Rebanhos



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Fernando Pessoa